As tensões geopolíticas ampliam o leque de riscos para a economia mundial e o comércio neste início de 2022, constata Anabel González, diretora-geral adjunta da Organização Mundial do Comércio (OMC), em entrevista ao Valor.
“Existem alguns riscos de caráter geopolítico, macroeconômico, monetário que incidirão sobre o comportamento das exportações globais e, em consequência, também sobre a América Latina”, afirma González. “Não há poucos desafios no horizonte para o Brasil. Mas também há oportunidades muito importantes.”
O panorama global de comércio e investimentos está mudando aceleradamente, e isso tem incidência sobre o desempenho na economia global, diz Anabel González. Ela examina também, nesse cenário, o que será possível para os 164 países da OMC alcançarem realisticamente nessa entidade-chave na governança económica global neste ano.
Os riscos para o Brasil têm a ver com a desaceleração da economia global, em particular da China.”
González ocupa desde junho de 2021 uma das quatro diretorias adjuntas da OMC (as outras são ocupadas por uma americana, um chinês e um europeu). Ela é especialista em comércio, investimentos e desenvolvimento econômico. Foi ministra do Comércio Exterior da Costa Rica, serviu no Banco Mundial como diretora sênior da Prática Global de Comércio e Competitividade, na própria OMC foi diretora da Divisão de Agricultura e Commodities e também atuou como consultora sênior do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Mais recentemente, González foi ‘senior fellow’ não residente no Peterson Institute for International Economics, dos EUA. Leia os principais trechos da entrevista:
Valor: Como a sra. vê a economia mundial com essa recuperação tão desigual. Para onde estamos indo?
Anabel González: Creio que, dos problemas mais importantes que a economia mundial enfrenta, o primeiro é que está desacelerando, e segundo é o crescimento desigual. E o segundo é provocado por duas razões: a iniquidade no acesso à vacina e a incapacidade de resposta macroeconômica dos países. Os países com poder de fogo para apoiar seus setores com distintos tipos de medidas nos campos monetário, financeiro, têm visto crescimento mais rápido, assim como vacinaram mais rapidamente sua população.
No caso da América Latina, embora tenha sido bastante afetada pela pandemia, tanto do ponto de vista de saúde como econômico, também vimos uma resposta muito melhor do que em outras regiões em desenvolvimento em termos de vacinação. Os países latino-americanos vacinaram ao redor de 60% de sua população, em alguns chega a 70%. Isso permitiu adoção de medidas menos restritivas, inclusive em momentos em que a região luta contra essa onda da variante ômicron. É certo que a região vinha de uma situação precária, incluindo o macroeconômico. Vários países da região tiveram que se endividar de maneira significativa para fazer frente aos desafios da covid-19, e agora esses níveis de endividamento vão incidir sobre os desempenhos dos países.
Valor: Incerteza na recuperação global, covid, problemas logísticos, tensão geopolítica. Quais as perspectivas para o comércio mundial, em especial para a América Latina?
González: É importante notar que a América Latina conseguiu uma recuperação relativamente rápida em seu comércio em 2021. Em 2020, as exportações latino-americanas caíram 9,1% e as estimativas são de que terão crescido 25% a 28% em 2021 pelo aumento dos preços. Em termos de volume, o crescimento foi mais lento. Foi um crescimento liderado em grande parte pela expansão nos EUA – no caso de México, América Central e Colômbia – e pelo crescimento na China – no caso dos países sul-americanos como o Brasil, Argentina e Chile.
É importante que os membros considerem a OMC um foro importante para discutir temas como a taxa de carbono.”
Para 2022, a OMC prevê que o volume das exportações de mercadorias da América do Sul e América Central aumente cerca de 2%, o que fica abaixo da média mundial de 4,7% em volume. Parte disso é porque a recuperação está se desacelerando, e há alguns riscos à baixa. Você mencionou alguns fatos importantes, como as tensões geopolíticas, mas também aumento de inflação, em boa parte, associado à demanda e disrupções nas cadeias globais de valor. Existem, portanto, alguns riscos de caráter geopolítico, macroeconômico, monetário que incidirão sobre o comportamento das exportações globais e em consequência também sobre a América Latina, porque o crescimento exportador da América Latina é liderado pelo crescimento nos EUA, na China, na Europa e no próprio comércio na região.
Valor: Quais as projeções para o Brasil e o impacto para a região?
González: A OMC faz previsões por região. Um crescimento menos acelerado das exportações do Brasil tem impacto no comportamento de toda a América Latina. No ano passado, por exemplo, vimos que no Brasil o volume das exportações aumentou acima de 7%, no qual em boa medida explica o crescimento tão importante na América Latina. Mas se a economia da China desacelera, terá impacto sobre o Brasil e sobre a América Latina também. [Portanto] no campo do comércio [riscos para o Brasil] têm a ver com a desaceleração da economia global, em particular da China, e com medidas protecionistas que alguns países podem adotar. Também há um risco derivado das políticas monetárias de países avançados. Não há poucos desafios no horizonte para o Brasil. Mas também há oportunidades muito importantes. A adoção de um conjunto de medidas domésticas unidas a maior cooperação internacional pode ajudar o Brasil a enfrentar os desafios e aproveitar de forma as oportunidades.
Valor: Os desafios na economia e no comércio internacional crescem…
González: O panorama global de comércio e investimentos está mudando aceleradamente, e isso tem incidência sobre o desempenho da economia global. Está mudando rápido pelas tensões geopolíticas, mas também pelas mudanças tecnológicas, mudanças climáticas e por uma série de fatores. Isso apresenta maiores desafios, riscos à economia global, mas também maiores oportunidades. E muito disso é de caráter global e requer resposta global. A cooperação no comércio é crítica. Os membros da OMC têm a oportunidade de poder trabalhar conjuntamente para fortalecer o sistema multilateral, por exemplo começando com a questão de comércio e saúde, incluindo a propriedade intelectual.
Valor: O que a OMC pode entregar, em termos de resultados, em 2022?
González: A OMC estava no caminho de ter resultados na 12ª conferência ministerial que deveria ter ocorrido no fim de novembro e começo de dezembro, e foi adiada por causa dos desafios provocados justamente pela variante ômicron. Os temas tinham um nível de avanço importante. Um tema que deve gerar resultados é o de comércio e saúde, em particular em resposta à pandemia. Uma estrutura forte que facilite o comércio de vacinas e equipamentos médicos críticos e os insumos necessários para sua produção contribuiria muito para salvar vidas, apoiando uma recuperação mais ampla e ajudando a preparar o futuro com capacidade maior e diversificada de fabricação em todas as regiões.
Vínhamos trabalhando numa declaração e decisão que abordava temas importantes como restrição à exportação, facilitação de comércio, questões regulatórias, e se está retomando a discussão nesse campo. Uma parte muito importante tem a ver também com tema de propriedade intelectual [um grupo de 60 membros, liderados por Índia e África do Sul, defende que seja concedida a todos os membros da OMC uma exceção de determinadas provisões do Acordo de Trips em relação à ‘prevenção, contenção ou tratamento de covid-19’. Espero que ambos os temas possam se unir para gerar uma resposta forte da OMC à recuperação da pandemia.
Valor: Essa discussão continua sendo com um grupo de apenas quatro membros, o que irritou os países latino-americanos?
González: Em propriedade intelectual é muito importante chegar a pontos de convergência. Iniciamos discussões com membros como os EUA, União Europeia, Índia e África do Sul para identificar sobreposições. Mas não há dúvida que qualquer solução nesse campo deve envolver todos os países da OMC, muito particularmente os países que têm um interesse direto nesses temas, como é o caso do Brasil. São discussões que têm de ser expandidas, para definir uma solução. O tema é premente, pois já levamos um tempo discutindo.
Creio que uma possível convergência teria que ser num contexto mais amplo. Gostaria de pensar que nas próximas semanas possamos fazer um progresso muito significativo nessa área. Agora, quando falamos em progresso em matéria de comércio e saúde, incluindo propriedade intelectual, é muito importante termos presente que os membros da OMC devem continuar avançando nos outros temas críticos, que estavam na agenda da conferência ministerial, como cortar os subsídios à pesca [excessiva], que enviaria um forte sinal de compromisso com uma agenda de comércio verde. Tem a agricultura, que é importante para a América Latina. E tem a reforma da OMC que é crítico para o futuro da organização. É difícil se engajar na elaboração de regras sem um sistema de solução de controvérsias totalmente operacional. As normas são tão boas quanto sua aplicação, e é por isso que é fundamental restaurar um mecanismo vinculante para a solução de conflitos entre os membros da OMC. Todos os membros da OMC, mesmo os mais poderosos, estarão em melhor situação com o sistema do que sem ele. E se uma mudança for necessária, como pode ser, 2022 é o momento certo para se engajar seriamente nessa discussão.
Valor: Quando a conferência ministerial ocorrerá, e quais outros temas que poderiam prosperar em 2022 na OMC?
González: É difícil definir uma data precisa porque dependemos da evolução da pandemia. Pelo momento, estamos focados em promover progressos em cada setor. Há distintas discussões de como avançar. Podemos explorar opções, como eventuais reuniões ministeriais virtuais em alguns temas, conforme se for avançando, mas isso é algo que não está definido. Quanto a outros temas, participantes nas negociações sobre facilitação de investimentos para o desenvolvimento estabeleceram o objetivo de concluir um acordo em 2022 com o objetivo de ajudar os países a melhorar seu clima de negócios e tornar mais fácil aos investidores investir, gerir seus negócios e expandir as operações.
Também a preocupação com os crescentes níveis de apoio governamental que distorcem os mercados internacionais, juntamente com a limitada transparência e as percepções de injustiça, corroem o apoio público ao comércio aberto e sufocam a inovação, a concorrência e a produtividade. É cada vez mais reconhecido que a revisão e atualização das regras da OMC que tratam de subsídios e intervenção estatal na economia ajudaria a reduzir algumas das fricções comerciais que estão alimentando a incerteza e as tensões geopolíticas. Considerações fiscais e financeiras contribuem para a lógica de se reforçar as disciplinas tanto no setor industrial quanto no agrícola. Acho que 2022 é o ano para os membros da OMC enquadrarem conceitualmente a questão e estruturarem uma discussão que leve à revisão das regras e compromissos nesta área.
Valor: Com relação à transição ambiental, a taxa de carbono na fronteira, por exemplo, que a União Europeia quer aplicar em importações, é algo inevitável? O que pode acontecer na OMC sobre o tema?
González: Os temas de comércio e ambiente vão ter presença cada vez mais importante na OMC. Em dezembro, membros da OMC lançaram uma série de discussões estruturais no caminho para fortalecer o papel das regras comerciais no combate eficaz à mudança climática e no apoio aos objetivos ambientais, explorando o trabalho em áreas como comércio de bens e serviços ambientais, comércio de plásticos sustentáveis e subsídios a combustíveis fósseis, entre outras. O trabalho em 2022 poderia preparar o terreno para o lançamento de negociações plurilaterais em algumas dessas áreas. É importante que os membros considerem a OMC como um foro importante para discutir temas como o CBAM [mecanismo de ajuste de carbono na fronteira, ou taxa de carbono] e mecanismos para apoiar o caminho para a sustentabilidade, para evitar ou reduzir fricções que eles podem gerar.
Valor: Como compatibilizar essa discussão na OMC e na OCDE, por exemplo?
González: Em todas as organizações há espaço para esses temas. Mas, visto o impacto comercial que mecanismos como CBAM podem ter, é importante que boa parte dessa discussão ocorra na OMC. Ou os membros discutem questões sobre como poderiam levar a cabo sua implementação, que provisões tomar para serem compatíveis com a OMC, ou enfrentaremos fricções comerciais que eventualmente virão à OMC para serem resolvidas, não mais necessariamente pela via do diálogo e sim pela via da solução de conflito.
Valor: Medida como vetar importação de produto vindo de área desmatada, como quer fazer a UE, é algo que vai se impor no comércio mundial?
González: A relação entre comércio e meio ambiente pode operar em dois níveis. De uma parte, o comércio pode ser um instrumento muito valioso para apoiar desenvolvimento de política ambiental. Pensemos, por exemplo, na facilitação de importação de tecnologias ambientalmente amigáveis. Aí o comércio pode ter papel importante com redução tarifária para facilitar a importação desse tipo de produto. Mas também é certo que há um risco de que medidas adotadas no campo ambiental podem gerar fricções no campo comercial. E aí está a responsabilidade dos países de vir a um foro como a OMC para estabelecer diálogo sobre os instrumentos cuja aplicação seja em conformidade com as regras da OMC. É muito importante também em outros setores, como no setor agrícola. Já temos alguns comitês que discutem os temas, mas não há dúvida que conforme os países avançam na adoção de medidas dessa natureza, o diálogo na OMC terá de se fortalecer.
Valor: Quanto a negociação de regras para o comércio digital, como avançar em meio à crescente rivalidade EUA versus China, que poderia mesmo fraturar o mundo digital cada um com seu modelo de Internet, por exemplo?
González: Um conjunto de regras globais é fundamental para apoiar o comércio eletrônico. Há discussões na OMC, entre 86 membros participantes, incluindo EUA, União Europeia, China e Brasil, que fez avanços importantes, sobre assinatura digital, governo aberto, etc. Mas não cabe dúvida que há temas críticos, como proteção de dados, localização de dados etc. Os países que colidiram com essa iniciativa desejam obter um progresso importante neste ano para avançar. São discussões complexas. Num mundo fragmentado para o comércio eletrônico, a pequena e média empresa vai ter muito mais dificuldade para exportar, pesando em sua competitividade.
Fonte Internet: Valor Econômico, 28/01/2022
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